Há três anos, Cristina foi embora. Ficaram coisas a serem ditas, uma camiseta vestida pela metade e um laudo não concluído. Ficaram memórias, saudades e um monte de histórias. Ficou o desejo de mais um abraço, pelo menos.
Parte 1
O combinado era que eu buscaria as crianças na tua casa perto das 10. Já eram 10h30, o Vicente e eu continuávamos no restaurante. Um assunto engatava no outro.
Então eu te liguei, disse que continuava no restaurante, mas que já estávamos de saída. Eu não sei se você lembra, mas você disse que não, pra eu não me apressar, que era pra eu aproveitar o tempo com o meu amigo que no dia seguinte voltava para o Brasil.
Fiz o que você me indicou, não me apressei. Pedimos sobremesa e ficamos lá conversando um pouco mais. Tinha uma brisa boa, que mais tarde terminaria em temporal, e não fazia muito calor.
Quando cheguei na portaria do prédio te telefonei e pedi para você descer as crianças até o carro. Você me disse que não, de jeito nenhum. Disse ainda que eles tinham pegado no sono enquanto você lia uma história e que não os acordaria.
Então entrei no elevador e subi até a tua casa.
A gente se deu oi e nos abraçamos mais forte que de costume, um abraço quentinho. Você me deu um beijo e perguntou como tinha sido a minha noite, eu te agradeci por ter ficado com meus filhos e por ter insistido para eu ficar mais. Tinha sido uma noite maravilhosa.
Essa foi a última vez que nos vimos.
Peguei as crianças e fui embora antes que começasse a chover.
Durante a noite caiu um temporal.
Parte 2
Na manhã seguinte deixei as crianças na escola, passei pelo apartamento do Vicente, deixei ele no aeroporto e fui trabalhar.
Passei o dia como qualquer outro dos meus dias de dezembro; com calor, atordoada com a lista de pendentes para o Natal, e sempre me sentindo um pouco ébria. Em algum momento achei estranho que você não tinha me ligado, mas não fiz nada.
De noite, antes de ir dormir te liguei e você não atendeu. Ainda chovia muito e você detesta os temporais. De madrugada acordei assustada, te liguei de novo e você não me atendeu.
Percebi que você estava morta, mas voltei a dormir.
Eu te ouvi quando você sussurrou o meu nome de manhã. Tua voz sempre doce me acordou e são muitas as manhãs que eu tento ouvir você de novo. Você apenas disse o meu nome, certo? Ou algo mais que eu não escutei?
Levantei da cama e mandei uma mensagem pra a minha dermatologista para cancelar a consulta, imaginei que ia estar envolvida com a tua morte e não poderia ir.
Deixei as crianças na escola e fui pra a tua casa.
Abri a porta devagarinho e estava você ali, jogada na cama com uma blusa azul vestida pela metade – ou tirada pela metade, não sei.
Sim, eu sei que disse que eu tinha percebido que você estava morta, mas não é a mesma coisa achar que você está morta a ver você morta na cama. Eu sei que você tentou me advertir falando comigo de manhã, mas te encontrei assim fria quando eu ainda sentia o calor daquele abraço.
Liguei para emergências, que chamou a ambulância que chamou a polícia. A questão era se eu queria que eles te levassem para descobrirmos a razão da tua morte e te trariam de volta só depois do Natal ou colocavam no papel que tinha sido um ataque cardíaco e ponto final.
Achei que seria estranho passar o Natal imaginando você em outro lugar da cidade. Justo você, que ama o Natal em família, os enfeites, os presentes, as luzes. Justo você que mais de uma vez deixou a árvore montada até a Páscoa só porque achava bonita. Sim, eu sei que você cobria a árvore com um lençol para que as visitas não percebessem, mas admita que é estranho.
A questão Natal foi resolvida, mas nunca soube a causa da tua morte.
Ainda na tua casa, minhas amigas foram chegando. As mais sensíveis me diziam pra aproveitar tua presença, que você continuava ali no quarto com um fiapinho de vida. Acreditei em tudo. Tentei dizer o quanto te amo. Você chegou a ouvir?
As amigas mais práticas se ocuparam dos trâmites administrativos enquanto eu fui até a escola para avisar as crianças da tua morte. Não sei o que fiz o resto do dia. Estava muito quente e você sabe que o calor acaba comigo. Só me lembro de chorar por você.
No final do dia o Vicente voltou para Buenos Aires para ficar comigo. A Patrícia e a Fernanda também vieram. Sem mala, sem nada. Com tudo. Me senti tão bem com eles aqui me acompanhando. Se eu não estivesse tão triste pela tua morte, teria sido um dos dias mais felizes da minha vida. Mas se você não tivesse morrido eles não teriam vindo.
De noite comemos pizza e tomamos vinho com amigas portenhas, meu pai que veio de Rosário, a Patrícia, a Fernanda e o Vicente. Ficamos contando histórias tuas.
No dia seguinte as meninas voltaram pro Brasil. Era o último dia de aulas do Nino. Tinha festa de formatura na escola. Música e vídeos emotivos, papel picado, crianças pintando as camisetas com os nomes dos colegas e eu chorando. Chorando pela morte, pela vida e pelo calor.
Saí da escola com papel picado no cabelo e manchada de pintura. Fomos direto para o cemitério.
Durante a cerimônia de cremação lembrei de quando meu sogro morreu e fiquei revivendo aquele dia. Acho que usei a morte do meu sogro como um refúgio, era menos doído pensar na morte dele do que na tua. Num impulso me lembrei que aquela tarde você me disse que preferia ser enterrada do que cremada. Sim, lembrei disso no meio da tua cremação! Quase morro. Pensei em parar tudo, mas estava completamente paralisada de tristeza e de calor. Olhei ao redor e não soube a quem pedir ajuda para que cancelassem. Como você já deve ter percebido, não fiz nada e você foi cremada.
Parte 3
Depois de dois dias passei pela funerária pra buscar um documento e me disseram que você já estava ali, feita cinzas. Que o trâmite tinha sido mais rápido por causa do Natal e você estava disponível pra ser retirada. Hesitei entre te levar comigo ou te deixar lá até o dia seguinte e fazer dessa retirada um evento um pouco mais emotivo.
Decidi levar você comigo. Eu estava no carro, sozinha e com o porta malas cheio de compras de supermercado pro Natal. Não soube em que assento colocar você. Achei que te colocar no porta malas era no mínimo deprimente e abafado. Fiquei agoniada em te levar no banco da frente, sei lá sem cinto, uma freada brusca. Decidi te colocar no assento de atrás. Quando cheguei em casa não contei para ninguém que te tinha trazido comigo. Você dormiu no carro.
Decidimos jogar tuas cinzas no Rio de La Plata. A urna estava dentro de um envelope marrom lacrado. Abrimos o envelope, tiramos a urna. Estávamos nós, na beira do rio tentando tirar você da urna sem as ferramentas adequadas. Passou um pescador que nos emprestou um arame salvador e se juntou à cerimônia.
Quando abrimos, soprou um ventinho gostoso que nos cobriu de você.
A nós, ao pescador e a outros que passavam por ali.
Tem uma calça preta de bolinhas brancas, acho que é poá que chama, rasgada no meu guarda-roupa. Não é do meu feitio guardar roupa velha. Mas essa insiste em ficar. Não é por me trazer lembranças boas. Ou é. Depende do ponto de vista. Foi a Mai que me emprestou no dia em que você morreu.
Fazia frio em Buenos Aires e era dezembro, quase Natal. Foi tudo muito rápido. Eu, que sinto muito frio no avião, embarquei naquele voo com a roupa do corpo, um vestido curto de alcinha, muito colorido. Você teria gostado muito dele.
Cheguei na Pulp depois do Vicente e da Pati. Começamos a conversar, o Vi estava contando da viagem quando o telefone tocou. Ele raramente atende, mas deve ter notado que era um número internacional. Soubemos naquele momento que alguma coisa muito triste tinha acabado de acontecer.
Não lembro das palavras exatas. Lembro de poucas coisas exatas. Era o Ramiro, que estava em turnê por algum lugar da América Latina, acho, avisando que você tinha morrido. Ele ia demorar pra chegar na Argentina. Nós poderíamos chegar em poucas horas se conseguíssemos ir rápido pro aeroporto. Tinha um voo direto ainda antes do almoço. Corri pra casa, peguei duas ou três coisas sem sentido, não peguei calça, nem casaco. Avisei quem tinha que avisar e fui. A Pati foi comigo.
No aeroporto, encontramos o Vicente. Parcelei a passagem em 6 vezes sem juros e pensei em quantas vezes deixei de ir pra Buenos Aires porque as passagens estavam caras. Pensei também na carta que eu não te respondi. Deixei pra depois. E o que mais me doeu, dói ainda, lembrei que nunca te pedi desculpas por um mal entendido besta que deve ter te deixado triste. A mim, como mãe, deixaria. Quero acreditar que você me perdoou. Tento me lembrar da última vez que nos vimos, mas há uma lembrança que embaralha tudo: você usando uma tiara de flores coloridas que eu dei pra Elis. Parecia uma Frida Khalo sem bigode.
Ainda no aeroporto, antes de embarcar, encontramos uma professora de português da 8ª série. A professora havia marcado a vida de nós três - a minha, a da Pati e a do Vicente - ao nos fazer interpretar Bichos Escrotos, do Titãs, ao misturar literatura e música. Contamos o motivo da viagem, nós três ali, juntos como estamos há décadas, viajando para abraçar uma amiga que acabara de perder a mãe. Uma amiga que também havia sido aluna da professora. Uma aluna argentina que - como muitas crianças da nossa geração - tinha ido parar naquele colégio, na década de 80, ao fugir da ditadura militar. Contando essa história, fui também revivendo um pouquinho das coisas que aprendi com você, colando os caquinhos de uma vida que colou na minha.
Uma história cheia de buracos que eu continuo preenchendo a cada conversa com a Mai, a cada conto que ela escreve, a cada ponta de informação que costuro em outra desde que te conheci naquele apartamento abarrotado de móveis antigos, livros, fotos na parede e um piano que parecia um elefante preto numa gaiola de passarinho. Um apartamento e uma família tão diferentes de tudo que eu tinha conhecido até então. Gente com sotaque, com uma bagagem difícil de carregar. Com coragem e pensamento livre. Além de desculpas, te devo um enorme obrigada por trazer a Mai pra minha vida, por me mostrar que hay que endurecerse, pero sin perder la ternura. Jamás!
Já em Buenos Aires, nos misturamos todos. Tinha gente que eu já conhecia e gente que eu queria muito conhecer. O pai chegou com o irmão que não era gêmeo. As amigas, mulheres lindas e fortes, formavam um círculo de força e afeto que eu jamais tinha visto igual. Os amigos todos ali contando histórias tuas, as crianças tristes mas se sentindo protegidas por adultos decididos a trazer um pouco de delicadeza para a experiência da morte, pizza e vinho. Tanta vida pra quem fica depois da morte.
Tudo aconteceu tão de repente. Depois daqueles dias, aconteceram tantas coisas, que hoje lembro apenas de cenas. Vislumbres de momentos vividos intensamente.
Cena um: telefone tocando. Ramiro de Istambul. Vi, você já está em Curitiba? Sim, cheguei ontem. Putz grila (ele usa gírias antigas em português), é que a Cristina morreu. Não vou conseguir chegar a tempo do enterro.
Cena dois: eu, Patricia e Fernanda no aeroporto de Curitiba comprando as passagens de Aerolíneas Argentinas para Ezeiza umas duas horas depois da ligação do Ramiro. Cada um pagou um valor diferente, não dava para entender o que a vendedora tentava explicar, de tarifas dinâmicas sei lá o quê. Têm bagagem para despachar? Não.
Cena três: dois dias antes. Noite quente em Buenos Aires. Eu e a Mai conversando na varanda de um hotel boutique em Palermo Hollywood. Vamos pedir mais uma taça de vinho? Deixa eu falar com a minha mãe antes, as crianças estão na casa dela. Lembro de escutar ao fundo a voz da Cristina pelo celular da Mai. Som meio metálico. Que lindo, lo disfruten, foi o que disse.
Cena quatro: depois de uma tormenta tropical, Buenos Aires amanheceu molhada, melada e com árvores caídas. A Mai passou para me pegar no AirBnb bem cedo e me deixou no Aeroparque. Não acreditávamos no tamanho do estrago.
Cena cinco: chegamos na casa da Mai meio sem saber se de surpresa ou não. O trajeto de Ezeiza até lá levou o mesmo tempo que o voo de Curitiba. Vários amigos e amigas já estavam lá. Foi uma alegria enorme ver todo mundo, ao mesmo tempo em que dava uma tristeza enorme por conta da razão de estarmos ali. Muitas garrafas de vinho abertas. Risadas contidas. Abraços apertados. Conheci o pai dela e os irmãos gêmeos que não são gêmeos. Talvez fosse um primo. Não lembro bem.
Cena seis: cemitério da Chacarita, calor tropical e um cortejo enorme de amigos cruzando o gramado em direção ao crematório. Um padre que não parava de falar, eu achando estranho essa religiosidade repentina da família. A Mai me olha de soslaio, como dizendo: socorro, calem essa pessoa. Eu sorri, ela também.
Cena sete: em uma cervejaria portenha, encontrei a Cristina com um amigo sueco. Pedimos uma degustação de cervejas artesanais e em pouco tempo conversávamos em portunhol e swinglish. Demos muitas risadas. Já faz muitos anos. Na saída nos abraçamos bem apertado. Lembro que a Cristina gostava de dar esses abraços, pelo menos em mim. Foi a última vez que nos vimos.
Eu olhava para Cristina e só via os cabelos. Acho que muitas vezes eu devo ter me perdido na conversa porque aquele brilho dos longos fios negros me hipnotizavam. Ficava pensando que aquele cabelo tão brilhante só podia ser alguma coisa transbordando de dentro dela.
A Cristina era
O tom de voz, o ritmo das frases, a maneira de contar histórias, as pausas, a risada. Ela parecia se revelar por inteiro num segundo e se esconder por completo no outro. Tão frágil e tão forte. Tão mãe, tão filha.
A morte
Quando soube da notícia da sua morte, eu só conseguia pensar nos cabelos. Como se ela fosse feita daqueles longos fios brilhantes e negros.
A despedida
Eu precisava correr para abraçar minha amiga, dizer que ela podia chorar, estar do lado dela. Dizer que a mãe dela tinha sido importante na minha vida também e que eu sentiria falta das pequenas notícias e das muitas histórias.
Tenho fragmentos de memória do que se passou entre o telefonema, o guichê do aeroporto, o voo e o longo trajeto entre o aeroporto e a casa. Mas lembro com muito carinho do tempo que ficamos juntas depois disto.
Nos despedimos da mãe no mesmo dia que conhecemos o pai. Um dia que começou como outro qualquer mas que acabou nos marcando pra sempre. Um dia com muita dor mas com um encontro tão amoroso que era como se a Cristina estivesse junto, o tempo todo, sentada do nosso lado, nos observando e sorrindo, com seu cabelo brilhando. Feliz porque estávamos juntos.