Alumbramentos #05
O que te situa, o que te salva? O que melhora o teu sistema imunológico? Onde está a tua paz, a borda da tua piscina, teu bote salva-vidas? No que tu pensa quando acorda de madrugada?
Eu quero mais sábado nos meus dias, por Fernanda Ávila
Hoje pisei na areia. Na praia, viro andarilha. Nos primeiros 60 minutos de caminhada ouvi o episódio do Calcinha Larga com a Djamila Ribeiro. Que mulher, minha gente! Deixei tocar em ordem aleatória minha playlist preferida nos 30 minutos restantes de caminhada. A seleção se chama Easy Like Saturday Morning.
Me dei conta agora – numa quarta-feira – que a vida na praia pode ter um pouquinho de sábado todos os dias. Nem que seja de manhã cedo, nem que seja no final da tarde. Nem que seja naqueles minutinhos de madrugada em que a gente acorda sem saber onde está.
O mar me situa. No tempo e no espaço.
Morar na praia sempre foi um plano. Daqueles planos que moram no campo dos sonhos. Mas daí veio a pandemia (repara quantas vezes você ouviu ou falou essa frase nos últimos meses) e descobri que sonhos não deveriam ser adiados. Pelo menos não por muito tempo.
Não pensei nisso sozinha. É o Zeitgeist desse mundo pandêmico. O espírito do novo tempo. A tendência até já ganhou nome: YOLO Economy, sigla para You Only Live Once. Em português, você só vive uma vez. Uma pesquisa da Microsoft revelou que cerca de 40% dos estadunidenses pretendem pedir demissão este ano. As empresas estão oferecendo horários flexíveis, bônus, dias a mais de férias e outras coisinhas mais para segurar o povo na firma. Tem adiantado pouco, principalmente pra quem tem dinheiro guardado, estudou em boas universidades, experiência profissional disputada e/ou herança. Você pode chamar de segurança ou privilégio, as duas palavras cabem aqui.
O fato é que quem pode, está fazendo escolhas diferentes, reorganizando prioridades, colocando a vida em perspectiva. Pensando naquilo que gostaria de fazer menos. E no que quer fazer mais. Eu quero caminhar mais na praia.
Ouve essa música na voz de cafuné da Marisa Monte e me responde: o que você colocaria mais nos teus dias?
O que você gosta diariamente, é o que eu te desejo.
De olhos fechados, por Patricia Papp
Tive a impressão que estava em um quarto muito escuro mas não cheguei a abrir os olhos. Não tinha a mínima ideia de onde eu estava. Percebi que estava bem fisicamente, não sentia nenhuma dor, nem sensação de desconforto no corpo. Decidi não levantar ainda, não saberia em que direção estava a porta ou o banheiro. Nem se havia um banheiro ali. Achei que talvez um checklist auditivo poderia me ajudar a me localizar:
Barulhos de rua: estou perto de uma avenida, estrada com ônibus, carros passando rápido?
Algum som da natureza: sapos coaxando ou uma vaca mugindo que me digam que estou em um sítio, grilos que indiquem que estou na praia e vai fazer sol, mosquitos zunindo no meu ouvido me incomodando que talvez sugiram que estou acampando?
Algum outro som específico que traga mais informações – um trem que passe em períodos regulares ou avião voando baixo que indique que estou próxima a um aeroporto? Barulhos de vizinhos, pessoas transando loucamente, conversas, brigas, música, passos, portas batendo ou mesmo o som da descarga de um apartamento ao lado que possam ajudar a localização.
Não consegui muitos elementos que determinassem onde estava e meu esforço para tentar desvendar o mistério acabou me dando muito sono. Decidi adiar a descoberta já que o travesseiro era muito confortável e a textura do lençol estava bem agradável. Não me dei nem ao trabalho de ver se tinha alguém na cama, virei para o lado e dormi de novo.
De olhos abertos
Se de noite dormi, de dia li no comboio. Conheci a Alexandra, a Lucas Coelho, através da Fer. Ela insistiu para que eu lesse “Cinco voltas na Bahia e um beijo pro Caetano”. Essa Alexandra é portuguesa, mas conhece mais de Bahia, Nelson Rodrigues e Machado de Assis do que muitos brasileiros.
Em Lisboa, “O amante de domingo” apareceu para mim. Um livro que ela lançou em 2014 e que me acompanhou neste verão português. Adorei me debater neste desencontro de línguas e no ritmo acelerado da narrativa. Daqueles livros que lembram a sensação que temos quando estamos viajando e não queremos esquecer uma paisagem, um lugar ou um quadro em um museu e ficamos tentando reter a imagem na cabeça. Fiquei relendo e grifando para ver se as palavras grudavam, com medo de perdê-las.
“Toda paixão é um ataque ao sistema imunitário. Se precisamos dela para viver, precisamos que ela acalme, ou seja, acabe, para continuarmos vivos. A amizade é o contrário, um estoque ilimitado de gengibre.”
Desalumbramentos, por Vicente Frare
Tem temporadas em que os alumbramentos saltam na minha frente como peixes na pororoca. Basta eu fixar a atenção na correnteza que agarro um aqui, outro ali. Como um urso naqueles córregos canadenses, ou, num toque mais regional, uma ariranha amazônica. Só que tem também as temporadas de seca, quando mesmo vestindo um escafandro, mergulho em mim e não encontro nada. Faço uma vistoria debaixo de pedras, dentro de cavernas e nem aquele polvo amigo dá sinal de vida. Falando em polvo, você já viu o maravilhoso documentário Professor Polvo no Netflix?
Não me preocupo quando me sinto desalumbrado. O tempo, a terapia e a meditação me ensinaram que a vida são ciclos. Basta termos paciência para esperar, que a maré se dá conta de nos realumbrar. Penso no livro infantil Altos e Baixos, de Giovana Madalosso, recém lançado pela Leiturinha, que conta aos pequenos que nem tudo precisa ser sempre o mais alto, o mais bonito, o mais incrível. O livro é recomendado para leitores de 4 a 8 anos, mas eu recomendo para leitores de 8 a 80.
Por hora vou fazer um chá bem quentinho, sentar na janela e observar o mundo à espera da maré, dos peixes e da lua nova.