Alumbramentos #06
Esse mês sem feriados parece infinito. Vamos celebrar misturando um punhado de medos com uma porção de saudades. Joga purpurina pra finalizar, mexe bem e toma no gargalo pra aplacar o frio.
Bailam corujas e pirilampos, por Fernanda Avila
O inverno tá parecendo mais longo e tem feito muito frio. É agosto, e tudo bem. Porque é o mês em que eu nasci. Um mês que me tira pra dançar, que sopra coragem no meu ouvido. Sempre penso que quando chegar setembro, tudo vai dar certo. Os virginianos vêm reorganizar as coisas, colar os post-its, trazer a primavera de volta pro hemisfério sul, tirar as blusas de alcinha do guarda-roupa. Por agora são os leoninos que bagunçam a porra toda. Igual Madonna cantando let your body move to the music, Caetano falando que alguma coisa tá fora da ordem ou Ney Matogrosso dizendo que se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
E por falar em Ney, dia 1º de agosto foi aniversário dele, que é um dos cinco músicos mais tocados no meu Spotify. Se eu pudesse, dava um abraço bem apertado e agradecia por todas as vezes em que ele me fez cantar Homem com H em voz alta, até em karaokê. Por ter me feito chorar com Rosa de Hiroshima, por ter sido amigo do Cazuza, por ter cantado Cartola e gravado com Pedro Luiz e a Parede. Por ter confundido conservadores e enganado militares. Por embaralhar conceitos de masculino e feminino, por nos contar que não existe pecado do lado de baixo do Equador. Por nos mostrar o melhor do Brasil.
Gracias, Ney, por ser liberdade acima de tudo!
Meu sangue latino...
Pra comemorar os 80 anos do Ney Matogrosso, a Companhia das Letras lançou uma biografia, escrita pelo Julio Maria. Ainda não li, mas ouvi duas entrevistas em que ele (o biografado) conta um pouquinho sobre o processo de escrita da obra. Uma delas foi para o podcast da Quatro Cinco Um e a outra para o Expresso Ilustrada, da Folha.
O Parque das Irmãs Magníficas, editado pela Planeta, da escritora, atriz e cantora argentina Camila Sosa Villada, é minha sugestão de leitura pra esquentar o coração. Um daqueles livros que nos fazem ter certeza de que o amor transcende qualquer tentativa de nomear, rotular, definir ou classificar. Uma narrativa que mistura conto de fadas com história de terror. Um retrato das festas e dores que atravessam a vida de uma travesti. Daqueles livros que depois de ler a gente quer que todo mundo leia!
E ainda nessa pegada de amor é amor, recomendo a série de podcasts Nós, das jornalistas Roberta Martinelli e Sarah Oliveira. Num jogo de entrevistas em que uma não sabe o lado da outra, as duas conversam com personagens de uma mesma história. E são sempre histórias de afeto. No final, as duas ainda criam uma playlist de músicas relacionadas à narrativa. Gosto de história de gente, é vício de jornalista. E choro cachoeiras... é meu sangue latino.
Por hoje é isso, amigos e amigas.
Não se esqueçam de dançar em agosto, ajuda a passar o frio.
Passeando na floresta enquanto o seu lobo não vem, por Vicente Frare
Estou aqui e agora. Vivo. Talvez esse insight, new age e zen budista, seja o que realmente importa. O passado passou. Aconteceu, foi manchete, me incomodou, me emocionou. Virou página da wikipédia, enciclopédia, livro de História e lendas familiares. Do futuro, pouco sei. Quero que seja de uma certa maneira, faço movimentos para chegar lá, mas a verdade é que o tempo passa rasteira, mas também faz cafuné.
Tenho pensado nessas questões depois que visitei o vilarejo onde fiz faculdade, há 23 anos. Foi uma visita carregada de emoções e me dei conta de que o momento da minha formatura, em 1998, situa-se exatamente no meio da minha vida, já que me formei com 23 e hoje tenho 46. Vendo o prédio da escola, a zona ao redor, as mudanças do lugar, me dei conta do quão diferente minha vida é hoje do que imaginei que seria no dia da colação de grau.
O alumbramento foi notar que ainda existem traços daquele garoto cheio de sonhos neste homem de quase meia-idade. Sou outro e sou o mesmo. Faço um resumo dos dois, olho para a frente e sigo por esses caminhos tortuosos que chamamos de vida.
Hoje fui caminhar numa trilha em meio a um parque nacional. Estava sozinho. Viajo muito sozinho. Não avisei ninguém para onde ia. Só mando mensagens no fim do dia para meu irmão, que está a 24 horas daqui e não pode fazer grande coisa caso a mensagem de hoje não chegue. Na caminhada fui pensando nos ursos que vivem pelo parque e o que faria se desse de cara com um. A ideia começou a me dar medo. Depois comecei a pensar em gente louca que mora pelo mato. Vai que um desses resolve me prender numa cabana.
Me dei conta de que todos esses pensamentos amedrontadores estavam estragando o meu passeio, pois a cada passo adiante, eu pensava em voltar para a cidade. Decidi que não iria ter medo. Deixaria para me preocupar com o urso caso o encontro realmente acontecesse. Falei para mim mesmo que essas histórias de psicopatas e selvagens da motosserra existem nos filmes e nos livros que ajudam a poluir a cabeça. Só lembramos deles nas horas em que nos vemos no meio de um mato, sem ninguém por perto. Ou quando o pneu do carro fura de noite na estrada de terra.
Esses medos que aprendemos na ficção é que agem nas questões passado e futuro da vida real. É mais fácil encarar o hoje, sabendo que amanhã vai ser hoje quando chegar. Então, tal qual um urso, um psicopata ou também qual um presente, uma boa notícia, uma promoção ou a primavera, lida-se com o tema na hora em que chegar. Esse é Vicente escrevendo em posição de lótus.
Recomendo o livro "Bonsai e a vida privada das árvores" do chileno Alejandro Zambra, que começa avisando que uma das protagonistas morrerá ao longo do livro, mas que pouco importa, já que o resto é literatura. Se você gosta de podcasts de história em inglês, tenho escutado "Stuff the British Stole", sobre o atualíssimo tema das repatriações de objetos históricos. É puro passado desaguando no presente.
Detalhe, esse texto é bem "faça o que eu digo mas não faça o que eu faço", pois sigo entremeado entre passado, presente e futuro. Mas se você pensar em qual o teu maior medo na vida, saiba que muito provavelmente é uma grande fantasia com poucas chances de se tornar realidade. Esse foi o Vicente sentado atrás do divã.
Quarentenando, por Patricia Papp
Esta era a vista que eu tinha do meu apartamento em Portugal. Foi a primeira viagem que fiz depois de um ano e meio. Depois de uma eterna quarentena em casa, precisei fazer uma quarentena em outro país. Passei muitas horas olhando para o mar e vendo os barquinhos passando. Vi esta mesma paisagem de manhã cedinho, com o sol forte da hora do almoço, com tons rodados no pôr do sol e com uma moldura de estrelas de noite.
Todos os dias, abria a janela e o céu estava azul. Me sentia no “Feitiço do Tempo”. É estranho fazer quarentena em um lugar que você não conhece. Eu nunca tinha ido para Estoril, não sabia se a praia tinha areia ou pedrinhas, qual era a cor do mar ou se as pessoas usavam máscara. Eu podia apenas imaginar, como se estivesse escrevendo um capítulo do livro Cidades Invisíveis, do Ítalo Calvino.
Olhava as pessoas lá embaixo e criava historinhas na minha cabeça. Em frente ao meu prédio havia uma pista de skate, de manhã havia muitos pais e mães levando os filhos para praticar. De tarde, a idade dos skatistas mudava. Eu me sentia viva de ouvir as risadas, mesmo estando trancada em um apartamento. Depois de alguns dias passei a conhecer a região pelo Google Maps. Dei uma olhada no menu dos restaurantes e na avaliação de cada um. Descobri onde ficava a sorveteria e fiquei imaginando que sabor de sorvete eu escolheria. Pesquisei onde ficava a farmácia, o mercado e a livraria. Calculei o tempo que iria levar caminhando até a praia: menos de quinze minutos.
Foram duas viagens, uma por uma cidade que inventei e outra quando finalmente pude caminhar pela praia, encantada, deslumbrada, tirando selfies, querendo sentir o mar, a areia, o calor e o vento. Aos poucos, fui esquecendo daquela sensação de que a vida lá fora não nos pertence, que eu sentia quando a paisagem da sacada era tudo o que eu tinha. Substitui lugares que imaginei, por paisagens reais.
Mas agora que voltei, e não tenho mais nem um nem outro, até daquela vista da sacada dos meus dias de marmota, tenho saudades.
Ancestralidade
Tenho duas dicas ligadas a ancestralidade e avós, este assunto que já nos alumbrou algumas vezes. A primeira, é o livro Cartas para Minha Avó, que a Djamila Ribeiro lançou esta semana pela Cia das Letras em uma live com convidados como Regina Casé, Taís Araújo e Teresa Cristina. Está gravada no Insta @djamilaribeiro.
A segunda dica de leitura é o novo livro da minha avó, Iris K. Bigarella, que também acabou de sair do forno: Chegando Feliz aos Cem Anos. Um projeto com o qual me envolvi de todas as formas, e que conta uma história muito bonita e cheia de busca espiritual, de uma mulher muito forte e que admiro muito.
O livro pode ser comprado por R$ 40 (com entrega incluída para todo o Brasil) pelo PIX 84145285972. Depois de fazer a transferência, é só enviar comprovante da transferência junto com o endereço de envio para o e-mail irisbigarella@gmail.com
Até o próximo!