Alumbramentos #07
Uma mistura de assuntos para compensar o atraso: Maria das Dores, as incertezas de setembro e o jogo de xadrez que virou o mundo... Bienvenidos e bienvenidas ao nosso sétimo Alumbramento!
Até me doem as juntas dos dedos,
por Fernanda Avila
Gosto de setembro porque no hemisfério onde moro, é quando começa a primavera. Gosto também porque minha vó fazia aniversário nele e porque tem um feriadão emendado. Quase sempre chuvoso, uma pena. Mas nesse setembro, em especial, sinto um embrulho no estômago. Uma mistura esquizofrênica de esperança com medo. Quem não?
Não tenho lido muito ultimamente. Também faz tempo que não escrevo. Agosto foi mês de fechar caixas, desapegar de lembranças, despachar o que não serve, entregar chaves. Mês de faxina, de fechamentos. De modo que essas palavras aqui não estão me saindo fácil. Tô destreinada. Até me doem as juntas dos dedos ao digitar. Exercitei muitos sentimentos nos últimos dias, mas faltou disciplina para transformar tudo em texto. Falo isso porque ouvi algumas reclamações de que o Alumbramentos atrasou mais de duas semanas. E se isso me deixou um tequinho triste, porque não gosto de atrasar coisas, me deixou bem feliz de saber que temos leitores fiéis e atentos.
E já que me falta inspiração pra inventar coisas novas, e ando achando meio repetitivo falar de mim mesma, vou contar pra vocês a história da Maria das Dores, a menina que não gostava do seu nome. Ela nunca entendeu porque a mãe havia escolhido batizá-la assim. Mãe, o meu parto doeu muito, foi? A mãe lhe contava sempre uma história qualquer sobre uma vizinha muito boa que quis homenagear. Foi uma senhora de muitas virtudes, menina, e é um nome bonito, para de reclamar.
Pensava tanto nisso que começou a reparar no nome de tudo. E a pensar se os nomes das coisas estavam adequados a elas. Girassol, por exemplo, era um nome certo. Brinco de Princesa também. A planta ficaria linda numa orelha real. Amoreiras davam amoras. E amora é uma palavra tão cheia de curvas, quase formada por bolinhas, como a fruta é. As cores, concordava com todas. Azul era azul mesmo. Roxo não poderia ser chamado de outra forma. Tinha um carinho especial por caramelo, terracota e magenta.
Tão obcecada estava com os nomes e seus significados, começou a colecioná-los. Comprava esmaltes para guardar em caixinhas: Pink Vigarista, Deixa Beijar, Leo Trouxe Flores. Morava na Rua do Jogo da Bola e todos os dias passava pela Rua do Casal do Mato a caminho da escola. Ficava imaginando quem teria sido Linda-A-Velha e sonhava em conhecer Ver-O-Mar. Lia o jornal todas as manhãs para saber qual o nome da nova Operação da Polícia Federal: Praga do Egito, Carne Fraca, Tabela Periódica. E a sua preferida, Operação Good Vibes. Gostava de nomes que contavam histórias.
Até que um dia, voltando da escola, topou com uma pedra, caiu, bateu a cabeça e perdeu a memória. Já não lembrava do seu nome e nem do nome de coisa alguma. Trouxeram-lhe dicionários, deram-lhe aulas de português, todos se empenharam na tarefa de lhe ensinar tudo outra vez. A casa ficou coberta de post-its coloridos com os nomes das coisas. Tudo estava devidamente nomeado: porta, mesa, tapete, gaveta, torneira. Até o cão andava com uma etiqueta cor-de-rosa colada na coleira com a palavra cachorro escrita com caneta verde.
Já havia decorado quase tudo até a letra R, quando foi levada a um museu. Achavam que a arte poderia despertar outros sentidos, mexer nas gavetas do inconsciente. Era mais um dos tratamentos a que vinha sendo submetida para recuperar a memória. Passeava por obras com nomes como Mulher no Espelho ou Campo de Tulipas, quando parou diante de um quadro sem nome. Obra sem título, dizia o cartão branco colado na parede, ao lado direito. Na imagem via-se um pato. Formado por linhas retas, quadrados sobrepostos, mas ainda sim estava claro: era um pato. Achando que se tratava de um engano, chamou o segurança para pedir explicações. O homem chamou o diretor do museu, que foi falar com o curador da exposição. Ninguém fazia ideia porque não havia nome naquele quadro. Conseguiram então localizar o artista, que morava em outro país. Maria enviou um e-mail perguntando porque havia pintado um quadro sem nome. A resposta veio rápida, objetiva, sem rodeios. Não tem nome porque nem tudo é o que parece.
A pensar sobre setembro, esse mês que parece ser da Independência. E não é?
Fecho minha participação aqui com uma chica latinoamericana das mais importantes: Silvina Ocampo. Descobri o livro A Fúria no perfil As Páginas Viradas de 2021, da minha amiga Rafa, que lê muito, lê coisa boa, além de ser gente fina, elegante e sincera. Tão sincera, que me avisou: vai com calma nesse livro. Repasso aqui o conselho.
O desafio das fronteiras,
por Patricia Papp
Então chegou setembro, depois do longo agosto, que foi cheio de despedidas, ausências e incertezas. Os ipês estão mais amarelos do que nunca, super instagramáveis, uma imagem bitter sweet porque a intensidade da cor é proporcional à seca pela qual estamos passando.
Comecei este texto semana passada, alguns países da Europa anunciaram que estavam abrindo as fronteiras para o Brasil. De lá pra cá, só notícias boas: Suiça, Alemanha, Espanha e, agora, Portugal. O mês começa com um suspiro de alivio (e uma pausa de apreensão).
Se você está começando a pensar na possibilidade de viajar para Europa, é bom que saiba que é necessário uma dose extra de planejamento e paciência.
As regras de entrada nos países mudam o tempo todo, literalmente. Ultimamente, tem sido pra melhor. Recomendo, antes de marcar sua passagem, verificar se estão exigindo testes, vacinas ou formulários de entrada. Cada país tem suas regras e cada item tem inúmeras variáveis. O teste PCR pode de ser até 72 horas antes, mas o antígeno, apenas 48. As vacinas aceitas em um país, não aceitas em outro, e por aí vai. A entrada em um país não depende só da sua origem mas também de onde você esteve e as regras para crianças são diferentes das regras para adultos. Burocracia que chama?
Engraçado porque viajar para Europa já foi bem burocrático (e caro) antes. Nos anos 90, antes do euro, as moedas de cada país era diferente do outro, a França tinha francos; a Alemanha, marcos; a Itália, liras… cada conversão roubava um pouquinho da nossa moeda (que ainda nem era o real). E alguns países ainda exigiam vistos. Sem falar na inflação. Mas o mais interessante é que, na volta, o que ficam são as fotos e a lembrança. Toda esta trabalheira parece um desafio divertido e as notas e moedas miúdas que sobraram, hoje são ótimas recordações.
Para ler viajando ou viajar lendo:
Livros que tem diferentes países como cenário:
A Rainha do Sul, Arturo Pérez-Reverte
O Tempo entre Costuras, Maria Dueñas
Travessuras de uma Menina Má, Mario Vargas Llosa
De Cape Town a Muscat - Uma aventura pela África, Guilherme Canever
Os alhures sempre foram meu refúgio,
por Vicente Frare
Viajar sempre definiu minha vida. Tirava notas boas e não brigava com o meu irmão só para poder embarcar para algum lugar no fim do ano. Planejava viagens sem nem ter noção do que era passaporte ou fronteira. Fiz viagens imaginárias para lugares que descobri na enciclopédia "O Mundo da Criança". Os alhures sempre foram meu refúgio.
Fiz Jornalismo para ser correspondente internacional. Teria sido eu a relatar na tv a tomada de Cabul pelos Talibãs. Troquei de curso. Optei por Hotelaria e Turismo para uma carreira internacional menos épica. Me imaginava trabalhando no Tibete ou num parque nacional do Quênia. No fundo descobri que gostava mesmo é de cidades. Vivi em várias.
Estar em outro lugar era o remédio para as incertezas internas. Tudo vai melhorar do lado de cima do Equador. Assim segui por anos até que o mundo parou e precisei reavaliar meus movimentos, planos e desejos. Ficar em casa por meses a fio não foi tão ruim com os privilégios de que gozo. Tinha comida, wifi, tarefas e livros.
Livros foram a salvação. Viajei para Porto Alegre com "O Avesso da Pele" e "Os Supridores". Para o Ceará eu fui com "A Palavra que Resta" e passei uns dias no Rio com "Essa Gente". Cruzei a Rússia em vários contos de Tchekhov e passei um inverno em Veneza junto com Brodsky. O poder dessas viagens, das imagens que criei e das sensações que tive ao virar as páginas são quase tão palpáveis quanto estar num bar de Madri ou pedalando pelo Central Park.
Viajar voltou a ser complexo. O mundo já não é mais aquela vila global de poucos anos atrás. Não vou dizer que não tenho circulado, cruzado fronteiras e visto a terra da janela de aviões, mas não importa quão complicada se torne a vida, sei que com livros vou sempre estar bem acompanhado.
Show!!!