Alumbramentos #08
Voltamos à sua caixa de entrada, agora com uma nova colaboradora! A Mai mora em Buenos Aires e chega por aqui nos fazendo pensar sobre todas as (nossas) vidas que cabem dentro de um livro. Boa leitura
Página 143,
por Mai Sturam
Minha mãe morreu na página 142 do livro De repente, la Libertad da Évelyne Psier e Caroline Laurent. Até a página 142 eu tinha mãe, já na 143 não.
O livro é de capa clara e ainda mora na minha pilha de livros da mesa de cabeceira, por onde circulam os próximos livros a ser lidos, os que estão sendo lidos e os que insistem em não querer ser abandonados após várias tentativas de leitura. Com esse de capa clara a gente se olha com frequência. Gosto de saber que a minha vida tendo mãe continua por perto.
Também gosto de olhar para a minha biblioteca e fazer o exercício de relembrar outras vidas que tive dentro da minha própria. Onde eu estava quando li Herejes, de quem estava apaixonada quando li El Arte de Amar, quantos anos eu tinha quando li a Isabel Allende pela primeira vez, quem me apresentou a Amelie Nothomb, ver o Pájaros en la Boca da Samantha Schweblin e saber que tenho que devolver para a amiga que não vejo faz tempo, como será que ela está? E me perguntar por que razão tenho um livro sobre a vida do Steve Jobs na prateleira.
Às vezes tenho saudades de alguns livros. Este sentimento me confunde, não estou certa de ter saudades do livro ou de quem eu era no momento da leitura.
Do que estou certa é que tenho saudades da minha vida anterior à página 143. Tenho vontade de contar para a minha mãe a quantidade de livros e principalmente autoras novas que estou descobrindo, do tanto que minha filha gosta de ler, que quando fui fazer a limpeza da casa dela o cheiro dos seus livros era o que mais me fazia chorar de tristeza pela sua morte, que guardei os seus livros preferidos, que muitos foram doados, que vários amigos meus e dela passaram pela sua casa e levaram de lembrança um livro da sua biblioteca. E que encontrei muitas cartas e bilhetes cheios de segredos que ela nunca me contou (esses eu conto pra vocês em outro alumbramento, quando a gente já se conhecer melhor, agora fico meio sem jeito)
Penso na quantidade de coisas relacionadas à literatura que ela me ensinou, sem que nenhuma de nós tivesse jamais imaginado que a leitura fosse um possível ponto de união. Esse ponto em comum sempre esteve ali entre nós, mas só consegui perceber isso depois que ela morreu, eu estava muito ocupada tentando me diferenciar dela em tudo o que fosse possível.
Por sorte o meu plano fracassou e vejo ela em mim, e talvez ainda mais importante e carinhoso é que constantemente procuro a ela em mim.
Cartas, cheiros e livros,
por Fernanda Avila
Minha mãe me escrevia cartas longas. A maior parte delas na época em que fui morar a 7.800 km de distância. Isso faz tempo, muito antes do WhatsApp. Ela contava coisas da vida, dava algumas pistas da saudades, reclamava um pouquinho das chatices do dia a dia. Era quase um diário. Gostoso de ler, cheio de afeto e coisas nossas. Uma continuação das conversas de café-da-manhã, dos trajetos de carro. Nada muito revelador ou impactante, nenhuma notícia arrebatadora. Esse tipo de coisa ficava pras chamadas telefônicas, muitas vezes - quando era eu quem fazia - intermediadas pela voz da telefonista que avisava: ligação a cobrar dos Estados Unidos, a senhora aceita? Ela sempre aceitava, mas a conversa era rápida porque 10 minutos de DDI custava o valor de um jantar em restaurante japonês de hoje em dia.
Agora virei a mãe que fica. Me pego olhando o relógio e calculando o fuso toda vez que quero mandar um sticker, saber se a balada foi boa, perguntar da aula ou só dar um oizinho mesmo. As conversas são imediatas e de graça. Dá pra ver a carinha, almoçar junto, dividir música, mandar vídeo, trocar receita.
Quase tudo, menos sentir cheiro de filha.
Parênteses pra dizer que "cheiro de filha, música de preto", é uma das frases que mais gosto do Djavan, o cara que todo mundo acha chato, mas todo mundo sabe cantar. Clica aqui pra ver que delícia. Fecha parênteses.
E cheiro é coisa que dá saudades. Embora uma empresa de tecnologia japonesa já tenha criado um dispositivo que libera odores pelo celular, isso ainda não chegou pra gente. E quando chegar, se chegar, não vai ser de odor personalizado. Ou seja, não vai rolar sentir aquele cheirinho que faz a gente saber que a filha pegou uma blusa emprestada ou deitou a cabeça no travesseiro.
Não sou nostálgica, mas - além de cheiro - outra coisa que não consigo substituir é livro de papel. Essa semana, depois da indicação de muita gente - finalmente li Tudo é Rio. Como estava com pressa, baixei no Kindle. Dinheiro desperdiçado. Acabei comprando outro na livraria pra rabiscar todinho. O livro foi o primeiro da mineira Carla Madeira, escrito em 2014. Adoro ler a primeira obra literária de alguém. Fico sempre pensando em quanto tempo aquela história demorou pra virar livro, o quanto de coragem a pessoa teve que reunir para colocar tudo no papel, em quantos nãos ela levou até conseguir publicar, na emoção que sentiu no dia do lançamento. É tanto sentimento colocado num livro que dá peninha imaginar ele se perdendo num universo paralelo digital.
Gosto de livro na estante, na mesa de cabeceira, em cima do sofá! Gosto de data e dedicatória.
Da minha parte é isso, amigos e amigas.
Leiam bastante, leiam mulheres.
Com amor,
Fer
Capas, orelhas e prateleiras
por Vicente Frare
Entrei rapidamente na minha livraria favorita para ver se já havia chegado o novo livro da Leïla Slimani. Fui direto à mesa de novidades e fiquei ali degustando os exemplares recém-chegados. Sempre me impressiono com a quantidade de livros para ler, com a variedade de temas, nomes, cores nas capas. Escutei alguém perguntando ao caixa pelo mesmo livro que buscava e levantei os olhos, curioso. Era um cara que já havia visto por ali algumas vezes. Gostei do cachecol e do seu corte de cabelo. Vi que encomendou o livro. Pagou adiantado e foi embora.
Dois dias depois passei novamente pela livraria e justo quando entrava vi o cara do cachecol na porta com uma sacolinha da loja na mão. Num ímpeto falei: ah, que bom que já chegou o Canção de Ninar, vim comprá-lo também. Ele me olhou meio surpreso, meio desconfiado, deu um sorriso e falou: boa leitura, depois me conta se gostou, enquanto desaparecia porta afora.
Ao devorar o livro, pensava em como estaria reagindo o cara do cachecol ao ler a mesma história. Será que ele também estaria agoniado com a babá? Será que ele lia no metrô? Travei um diálogo imaginário com ele. Ficamos íntimos. Quando terminei o livro, senti um vazio. Arrebatado com o desfecho, queria alguém para me abraçar e dizer que tudo ficaria bem, que aquilo era apenas uma obra de ficção.
Somente na primavera seguinte é que fui encontrar o cara do cachecol novamente na livraria, agora de bermuda e de chapéu de palha. Já tinha me esquecido da história do livro, mas não dele. Enquanto deambulava pela prateleira de literatura italiana me aproximei timidamente e, quase num balbucio, contei que tinha adorado o Canção de Ninar, que tinha visto ele comprando o livro, se ele me recomendaria algum outro parecido. Corei. Ele sorriu, falou que tinha ficado bastante incomodado com a história e que tinha vários outros livros ótimos que poderia me emprestar. Me convidou para tomar café no seu apartamento, a duas quadras da livraria.
Ao invés de café, bebemos duas garrafas de rosé. Não falamos de livros, falamos de sexo, ou melhor, rolamos pelo tapete da sala mais na prática do que na teoria. Voltei para casa com dois livros: Pais e Filhos, de Turguêniev, e As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. Agora cabe a mim convidá-lo para um café.
Leia-me,
por Patricia Papp
Ler, para mim, é a banalização suprema de um momento de paz. Não leio se estou com fome, sentindo frio ou calor, passando mal, se tem criança chorando ou brigando, se estou com pressa ou angustiada demais.
Desde cedo eu gostava de ler. Deitada na rede na casa da praia, o barulho das folhas das árvores se confundia com o som das folhas dos livros. Horas e horas lendo, enquanto o sol estava muito quente ou a chuva muito forte para andar de bicicleta. Em alguns períodos fiquei fixada em um autor, lembro de ter devorado livros da Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Zelia Gattai e depois Garcia Marques e Isabel Allende. Descobrir o realismo fantástico dos latinos americanos me deixou fascinada, como o amor e a dor podiam ter formas tão diferentes.
Quando entrei na faculdade, fui desafiada por colegas pseudo-intelectuais e pretensiosos da Comunicação a ler beatniks, clássicos, alternativos, John Fante, Virginia Wolf, James Joyce, Oscar Wilde. Foi um bom exercício. O professor de literatura era o Cristovão Tezza, que fez circular uma listinha obrigatória de livros que todos deveriam ler ao longo da vida.
Continuei explorando novos e velhos autores até que nasceu o Pedro. Foi um período longo de não-leitura. Entre fraldas, banhos e mamadas, mal tinha tempo para tomar banho, não encontrava espaço para outras histórias. Só fui ler de novo quando ele tinha 2 anos e meio. Não lembro qual foi o livro mas sei que estava na praia e lembro da sensação de que a vida estava voltando ao normal. Quando a Luiza nasceu passei por outro intervalo.
Os livros voltaram a circular da minha mesa de cabeceira para a bolsa, para a mala, para a estante dos lidos, um atrás do outros, Giovana, Djamila, Natália, Natércia, Jeferson, Tatiana, Bernardine, Itamar, Lygia, Rachel. Cada um despertando um poro, um suspiro, uma lágrima. Sempre emprestando e sempre pegando emprestados. Sempre querendo saber: tem um livro pra me indicar?
Os meus últimos 5 livros:
Carta pra minha avó, Djamila Ribeiro
Copo vazio, Natalia Timerman
Doramar ou a Odisseia, Itamar Vieira Junior
O dia em que a poesia derrotou um ditador, Antonio Skarmeta
Mulheres de Minha Alma, Isabel Allende
Bem vinda Mai!!!
Adorei todos os momentos de hoeh
❤️❤️