Bom dia!
Se você caiu de paraquedas aqui no #01, que tal passar no primeiro post para saber quem somos e de onde surgiu nossa ideia antes de seguir viagem?
Passado imperfeito, por Vicente Frare
Você sabia que a Marina Lima tem 65 anos? Foi com essa sacada inicial da Fernanda que começamos um bate-papo sobre a cantora, sobre seu ativismo no Twitter, sobre a poesia contida nas letras das músicas. A Patricia disse que ela é irmã do poeta Antônio Cícero. Contei que aprendi a sair de fininho de festas – e da vida de certas pessoas – quando descobri com ela o termo "à francesa". Talvez porque na letra da música, quem sai assim "viajaria muito, mas muito mais".
Uma das grandes cenas de minha adolescência com a Marina Lima foi num show no Teatro Guaíra. Era a primeira vez que me senti adulto. Usei a mesada para o ingresso. Não pedi para os meus pais, simplesmente avisei que iria e fui. Me encontrei com Fernanda, Patricia e outra amiga na pracinha da entrada, o melhor point de Curitiba para ver e ser visto. Eu todo penteado e elas todas de topete. Eu só achava estranho um show de música no teatro, mas não queria falar nada para não parecer jacú.
Durante o show ela cantou que estava grávida de um liquidificador. Falou sobre os inocentes no Leblon e, no ponto alto, jogou ao público "Uma Noite e Meia". De repente o teatro virou balada. As pessoas pularam das cadeiras de veludo e começaram a dançar e a cantar. Olhei para o lado e a Juliane estava em transe, de olhos fechados e com os braços para o alto, repetindo que "essa magia colorida, são coisas da vida". Eu, jacú que era, segui sentado, meio incrédulo com a dessacralização do Guaíra.
Acontece que nem Fernanda, nem Patricia, muito menos a outra amiga foram àquele show. Elas me juraram de pés juntos durante nosso bate-papo. Como assim? Eu lembro como se fosse ontem! A Pati até conseguiu o ingresso ligando para uma rádio. Sim, a Pati foi num show da Marina com o ingresso da rádio, mas não nesse show. Para mim foi um momento de desconstrução de uma vida. Eu via aquela cena com elas dançando ao meu lado repetidamente cada vez que escutava a Marina, desde os 17 anos. Só que aquilo não aconteceu. Não do jeito que eu me lembro.
Ricardo Piglia, escritor argentino, manteve durante toda a vida um diário. Ele conta que às vezes relia passagens de décadas atrás e não tinha a mínima lembrança do que estava escrito. Era como se o diário tivesse sido transformado em ficção. E isso é o que todos fazemos com as nossas memórias. Existe a vida que vivemos e outra, da qual lembramos. Junte dois ou três amigos das antigas, ou parentes para relembrar de um batizado, de uma viagem ou de uma festa de casamento. Vão surgir histórias bem divergentes.
O passado não é de ninguém. E é tão imperfeito que existe até um tempo verbal com esse nome.
Medo de esquecer, por Patricia Papp
Engraçado escrever sobre a memória justamente hoje. Passei o fim de semana na praia. Bate e volta: fui no sábado e voltei no domingo. Cheguei em casa e, assim que desfiz a pequena mala e ajeitei minhas coisas, percebi que havia esquecido a carteira com cartões e documentos na praia.
Como, na praia, o céu estava azul, e os dias estavam ensolarados, foi impossível não cogitar que este esquecimento foi um lapso, uma vontade subconsciente de voltar para aquele lugar de paz. Em uma família com psicanalistas, nada passa despercebido. Sai de casa no dia seguinte bem cedinho, passei duas horas no carro ouvindo meus podcasts preferidos, corri 5 quilômetros, respondi emails e voltei a tempo de buscar minha filha na aula.
Não foi a primeira vez que esqueci algo. Esqueço chaves, livros, computador, biquíni. Sou distraída. Claro que com o tempo a gente vai criando mecanismos para evitar as armadilhas: não sair de casa com o celular na mão, colocar a chave sempre no mesmo lugar, etc. Ajuda.
Mas é engraçado como a memória é seletiva, né? Esqueço a carteira mas lembro perfeitamente da cozinha do meu apartamento de Londres, das cores, dos cheiros, da música. Não lembro nome de remédios na farmácia mas sempre sei os dos vinhos de cor, não sei nome dos atores, mas nunca esqueço títulos de livros. Aliás, tenho ótima memória para lembrar os roteiros das viagens que fiz, a ordem das cidades, os restaurantes, os hotéis. Talvez escrever para o blog Viajo com Filhos tenha sido um ótimo treinamento.
Encerro com sugestões do livro A Soma dos Dias, da Isabel Allende e do filme Meu Pai, que rendeu o Oscar de melhor ator este ano para Anthony Hopkins.
Nunca experimentei transatlântico, por Fernanda Ávila
E olha ela... Isabel Allende, minha deusa, minha louca, minha feiticeira. A dona do meu coração, minha musa do verão! Na semana passada escrevi uma carta pra ela. Falei justamente da minha relação com A Soma dos Dias, expliquei porque nunca li Paula e contei que acendo uma vela pra ela todo 8 de janeiro (pra quem não sabe, a data em que ela começa um novo livro todos os anos). Não mandei a carta porque não sei o endereço, mas foi bom pra treinar a nossa conversa no avião, caso algum dia eu tenha a sorte de pegar um voo ao lado dela.
Sou daquelas pessoas que fica olhando o vizinho de poltrona com o canto do olho, esperando a primeira oportunidade pra engatar num papo. Essa mania de forçar amizade no avião tem uma boa explicação: morro de medo de voar e assim a viagem passa mais rápido. Capa de livro é sempre o melhor pretexto pra puxar conversa. Funciona pra voos curtos, não recomendo para os longos, por motivos óbvios.
Mesmo não gostando de andar de avião, adoro viajar com qualquer meio de transporte (nunca experimentei transatlântico). Ônibus é bom, mas é importante equalizar idade versus distância. Quando eu tinha 17 anos, fui de Curitiba até Buenos Aires com uma amiga num pinga-pinga que levou 30 horas. Hoje acho que meu ciático poderia reclamar um pouco. Trem é bacana. Tive só uma experiência ruim, mas não foi culpa do trem. Foi do Vicente, que não me deixou fazer xixi na estação antes de embarcar porque disse que a viagem era rapidinha. Fiquei esmagada numa cabine sem a mínima condição de trafegar até o banheiro (até pq o próprio banheiro tinha se transformado em cabine de passageiros) por três horas com a bexiga explodindo de vinho e chá marroquino.
Pra encerrar o assunto, queria dizer que amo uma roadtrip. Viajar de carro (motorhome também é bem legal) é uma das coisas que mais gosto de fazer na vida. Se tiver sol, melhor ainda. É só dar um match da playlist com o humor no dia e pronto, fez-se a mágica! Essa aqui é bem eclética, tem música pra tudo quanto é gosto.
Nestes dias estranhos, tenho dirigido virtualmente no site Drive and Listen. Já conheci Tel Aviv e Guadalajara, matei um pouco da saudades de Lisboa e descobri que existe uma cidade chamada Legal à beira mar (pesquisei no Google e não achei no mapa). Se você não é da meditação ou do mindfulness, aconselho essa técnica pra esvaziar a mente. Escolhe a cidade, sintoniza uma rádio local e vai.
Só mais uma dica pra encerrar o nosso verão de hoje: O Esboço, a primeira obra da trilogia da Raquel Cusk, começa com uma conversa de avião. Uma vida inteira contada no trajeto Londres-Atenas. Aqui vai um trechinho pra cutucar tua vontade de ler o livro todo:
"Mas a única esperança de encontrar alguma coisa é ficar exatamente onde se está, no lugar combinado. É apenas uma questão de quanto tempo você consegue aguentar"
Ps: Antes de enviar, fui pesquisar de novo sobre Legal. Fiquei encasquetada com essa cidade que nem o Google Maps tava achando. Tô rindo até agora. Legal é como o site traduziu Nice para o português. Quem diria, Legal fica na Riviera Francesa!
Never say goodbye
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Olá. Essa questão de traduzir o nome de cidades quase nos fez perder um voo que sairia de Charles de Gaulle. Vínhamos da Bélgica e buscávamos a indicação da cidade de Lille como referência de nossa rota. Nas placas da estrada só aparecia Rijsel. E nada de Lille. Muito tempo depois fomos descobrir que Lille é Rijsel na língua falada no sul da Bélgica. Bairrismo total.
Gostei muito da narrativa de vocês. Parabéns e aguardo as próximas.
muito legal! vontade de bater papo com vcs bebendo um bom vinho