Olá,
Chegamos à segunda edição dos alumbramentos carregando uma mochila cheia de ancestralidade. Essa coisa louca que mistura uma porção de DNAs, fatores socioambientais e geográficos, cultura e educação, traumas e sonhos para formar seres únicos, cada um de nós. Como se sendo únicos não fossemos muitos. Somos uma fila milenar de gente que, em retrospectiva, começa lá na África há 200 mil anos. E aqui, coladinho, pulando só uma geração pra trás estão elas, nossas fontes mais confiáveis de passado. Aquelas que nos garantiram algumas das histórias que vamos contar a seguir.
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Viva las abuelitas, por Fernanda Ávila
"A felicidade se acha nas horinhas de descuido". Essa é uma frase do Guimarães Rosa, mas eu conheci cantada pela Maria Bethânia. Tenho pensado bastante nisso enquanto vejo a vida passar. Se tem uma coisa que mudou em mim nesse tempo estranho, foi a vontade de parar pra ver a vida passar. Porque a alegria só acontece mesmo se a gente segura ela um pouquinho com as duas mãos, igual passarinho que entra em casa e nós pegamos com cuidado pra soltar lá fora, sabe?
E pensando nisso, me pego lembrando da minha vó. Não sei se as avós fazem isso de caso pensado, mas o fato é que elas são fábricas de memórias. Quando a máquina de lavar roupa dentro do meu estômago começa a girar pro lado errado, e eu quero encontrar uma lembrança boa pra acalmar o coração, penso nela.
Minha avó andava sempre suja de merengue. No cabelo, no queixo, nos óculos, sempre havia uma massaroca branca grudada nela. Dito isso, vocês podem imaginar que a casa da minha avó sempre tinha doces feitos com merengue. Meus amigos chamavam aquilo de suspiro e isso me incomodava um bocado. Assim como me incomodava quando chamavam dinda de madrinha, bergamota de mexerica e estojo de penal. Gosto quando os nomes das coisas permanecem do jeito que eu aprendi. Minha avó também era assim: chamou meia de carpim e vermelho de encarnado até o fim da vida. Ou até quase o fim, porque no fim mesmo ela já não lembrava mais o nome coisa alguma.
Ela não ligava pra roupa, não pintava o cabelo e era mestra em reciclagem. Não gostava de coisa jogada fora. Também não se conformava com gente passando fome e velhinho maltratado. Quando comemorava aniversário, pedia que os convidados levassem um quilo de alimento muito antes de virar moda. Nos finais de semana, levava sopa e carinho nos lares que ajudava. Foi professora de culinária e lançou um livro de receitas com nomes das amigas e parentes. Minha mãe foi imortalizada com nome de panqueca, minha tia virou mousse de presunto. Ela já era influenciadora antes das redes sociais, ganhava caixas de "recebidinhos" da Nestlé e chegou a ser convidada para conhecer a fábrica em São Paulo.
Minha avó também foi precursora dessa história de cursos. Imagino que se hoje estivesse viva e lúcida, seria uma entusiasta das aulas on-line. Só do que eu lembro, fez curso de chinelos, bonecas de porcelana, serigrafia em pijamas, sachês perfumados, velas, yoga, bombons recheados e de bichos de pelúcia. Fazia tricô e crochê enquanto assistia à novela. Sabia os nomes de todos os atores e atrizes e quando chegava as Olimpíadas, passava os dias grudada na TV. Gostava, em especial, de nado sincronizado. Ela tinha uma mania engraçada: ouvia fita cassete com piadas do Ari Toledo e ria sozinha.
Há quem pense que ela também falava sozinha. Mas ela falava com os mortos. Vivia cercada deles. Eram muitos e quase todos caboclos e pretos velhos. Tia Maria estava sempre por perto. Era chamada pra encontrar chaves, ajudar na prova de matemática, curar coração partido e doença. Qualquer um que precisasse de uma iluminação ligava pra minha vó e pedia pra ela interceder junto à Tia Maria. As duas tinham um canal direto, sem precisar de culto, missa ou gira.
Acho que é por isso que eu encerro minha participação por aqui com uma homenagem a outras duas avós que falam com os mortos e vivem na minha mesa de cabeceira: uma delas é a Inácia Micaela*, que ficou cega e aprendeu a diferenciar o dia e a noite pelo cheiro. A outra é Úrsula**, a matriarca dos Buendía e fundadora de Macondo, nossa eterna cidade-metáfora.
* do livro O Cheiro de Deus, do escritor mineiro Roberto Drummond, autor também de Hilda Furacão.
** de Cem Anos de Solidão, do Gabriel Garcia Marquez, obra que virou série e deve estrear esse ano no Netflix.
Fiquem bem, leiam os latino-americanos, ouçam Caetano e usem máscara. Hasta la vista!
Histórias dentro de mim, por Vicente Frare
Um mascate árabe que vendia tecidos e máquinas de costura encantou-se com a filha de um cliente que morava perto do mar. A moça era muito bonita, mas tinha uma saúde bastante frágil. Não se falava abertamente, mas as casamenteiras do vilarejo descartavam a moça para seus filhos, visto que tinha todo o jeito de ser seca. O mascate era o único que a cortejava e o cliente lhe ofereceu a mão de sua filha, desde que largasse mão da mula e encontrasse um trabalho fixo por ali. Ao contrário das expectativas, tiveram muitos filhos. Mas aquele lugar parecia pesteado. De tempos em tempos vizinhos amigos tornavam-se algozes inimigos, dependendo do livro com o qual cada família rezava. O mascate precisou colocar a mulher e os filhos num barco que zarpou para Buenos Aires, com escala em Santos e Paranaguá.
Poucos meses antes da noite de São Bartolomeu, sentindo que o clima na França estava ficando pesado, Guillaume, dono da fábrica de botões Virmond, vendeu sua empresa para um rico investidor católico e fugiu com a família para a província da Alsácia. Quando o massacre aconteceu, já estavam seguros do lado de lá da fronteira. O medo da perseguição religiosa era tanto que Guillaume assumiu o nome de Wilhelm e passou a falar apenas em alemão com a esposa e com os filhos. Um desses filhos, curioso pelo mundo, resolveu viajar. Gostou do Rio de Janeiro, mas fazia muito calor. Disseram para ele que mais ao sul o clima era parecido com o da Alsácia e assim encontrou Tibagi.
Adélia pegou uma gripe horrível e não pode ir ao baile no salão da prefeitura de Castro. Pediu para sua amiga Niva levar uma cartinha de amor e entregá-la a Ernesto, por quem Adélia estava apaixonada em segredo. Niva foi ao baile, Ernesto não. Ele estava ocupado com a filha de um fazendeiro. Tinha esquecido completamente de Adélia. Mas Ênio, seu irmão, apareceu no baile e foi para ele que Niva entregou a carta e, com o tempo, seu coração. Anos mais tarde, uma das filhas do casal encontrou-se por acaso com um dos netos do mascate árabe.
São histórias desconexas que aconteceram em épocas diferentes, em lugares distantes. Mas cada passo que essas pessoas deram, o mascate, Guillaume, Niva, foram essenciais para que eu estivesse aqui digitando esse texto. Sou resultado de mil acasos na vida de centenas de pessoas que jamais conheci. Carrego em cada uma das minhas células, pegadas dessa gente que riu, amou, brigou, fugiu e veio parar num lugar chamado Curitiba. Aqui as histórias se encaixaram em quatro pessoas, depois duas, depois eu.
Bastaria uma libanesa ter morrido de tifo, um mercador ter sido assaltado na estrada, uma festa cancelada por causa da chuva, uma invasão bárbara ter afugentado uma família em Roma ou minha mãe não ter gostado do meu pai no dia em que se conheceram para tudo na minha vida ser diferente. Ou não ser nada.
Não comecei escrevendo pensando na conclusão a que estou chegando, assim como alguma de minhas tataravós não pensou que engravidaria do homem que a abusou. Mas se cada vida tem o poder de transformar tantas outras que se seguem, o que dizer de 500 mil a menos só porque uma reles vida não acredita na ciência? Todas as noites têm sido noites de São Bartolomeu no Brasil de 2021.
Fizemos testes de DNA na família e foi muito divertido ver a mistura de gente de lugares como o Cáucaso, a Península Arábica, a Nigéria, Portugal e a América. Podemos todos falar português, mas nosso DNA é uma Babel! Duas empresas que fazem esses testes por correio através da saliva são Genera e meuDNA.
Margarida, por Patricia Papp
Margarida sempre caminhou com passos rápidos, produzindo pequenos estalos cada vez que a sola do pé desgrudava do chinelo. Passava pelos quartos recolhendo roupas e empilhando papéis, com pausas regulares para beber água. Faz questão de tomar dois litros por dia.
Sempre teve orgulho de sua agilidade. Nunca recebeu muitos elogios ou reconhecimento, mas é crítica o suficiente para saber de suas qualidades.
Entende que é impossível ter a mesma agilidade de dez ou vinte anos atrás, mas os pequenos detalhes da idade a incomodam profundamente. Acha os sapatos de tecido com sola de borracha feios, sem estilo e a cor é horrível. Mais de uma vez cogitou não levantar, só para não ter que calçá-los. Mas como todos têm medo que ela caia, ela tem que usar. Recomendação médica do neto mais velho, o doutor.
Ele mora longe e visita pouco, mas sempre tem uma lista de conselhos e recomendações. Quer saber todos os detalhes de sua alimentação, quais remédios está tomando, quantas horas ela dorme por noite. Quando termina o interrogatório, já está na hora de partir.
Sempre imaginou que quando o marido morresse, faria cursos, viagens, teria casos, seria finalmente livre. Não precisaria mais se preocupar se havia trancado a porta da casa, se o banho estava demorado, se a comida estava quente. Sairia para caminhar sem hora para voltar. Mudaria o tom da tintura e, quem sabe, mudaria o corte do cabelo.
Mas ele também não teve pressa de morrer. Os anos foram passando e as aflições e desejos, aos poucos, se acalmaram. Já não se imagina tão longe de casa, nem por tanto tempo. Já não caminha tão rápido, a perna pesa mais. Pela primeira vez na vida, sente prazer em ver as crianças brincando.
Minha avó está escrevendo um livro, Como chegar feliz aos 100 anos, que será lançado em breve pela editora Chiado. Logo conto mais notícias. E por falar em novidades, chegou ao Brasil Mérito, o último livro da trilogia da Rachel Cusk (Editora Todavia). Gostei muito do Esboço, o primeiro da série, que se passa na Grécia.
Se você gostou destes alumbramentos, tem outros aqui!
viva a ancestralidade que nos trouxe ate aqui e que sorte estar neste mundo na mesma época que vcs! ♥️delicia ler vcs!
Adorei!